segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Narciso sabia nadar



 Abriu os olhos e encarou a vastidão azul que cobria sua existência física.  Como era bela, a luz, o silêncio, o movimento, a leveza. Contemplando a sinergia que se materializava a sua volta de forma inédita, cedeu ao convite para o desconhecido, e imergiu. No leito dos pensamentos, refletiu sobre o dilema da beleza. Porque agora, finalmente livre do apego aos próprios traços, Narciso sentia a necessidade de se unir ao novo belo que consumia seus sentidos, de fazer parte de todo àquele azul, que para ele agora era o absoluto? Tentou amaldiçoar os deuses, tentou morrer, mas já se tornara um fantoche do desejo, desprovido do seu consciente, imerso por completo na admiração.
 Como o Olimpo  não ouvia seus gritos, negou o divino e convidou o filosófico para uma introspecção. Fechou os olhos e retornou a caverna espelhada que habitava anteriormente, antes do mergulho fatídico. Ficou na caverna até que sua imagem não precisasse mais do reflexo para acompanhá-lo. Abriu novamente os olhos, admirando as formas inéditas que a luz lhe presenteava, apaixonou se novamente pela imensidão azul, e viu sua imagem desaparecer. Mesmo invocando o seu outro belo, Narciso cedeu repetidamente a nova e desconhecida forma da beleza. Conclui, após a viagem platônica, que a beleza existe independente de forma ou vida, e que o seu laço com o desejo nasce do inédito, da primeira vista, da primeira sensação.
 Mas era insuficiente, pois ainda não explicava porque, aquele desejo, aquele sofrimento, era solitário, exclusivo, imune a qualquer compreensão, a qualquer ciência. Narciso então buscou no juízo de Kant um caminho para o seu próprio juízo.  Foi um erro, pois ao encarar o belo como despregado de qualquer conceito, como subjetivo e não adjetivo, viu a beleza se tornar intangível. Aquilo que até então o convidava para os prazeres do imprevisível, se transfigurou, transformando-se na feiúra, no outro lado do imã, invocando dentro do coração humano a rejeição, uma perversidade repleta de sensualidade.
 Atingido por sua nova compreensão, Narciso se viu livre das mãos do desejo. Recobrara os movimentos voluntários, e sentia a vida correr por suas veias. Olhou para cima e viu a luz que adentrava na caverna liquida e azul. Nadou como se um renascimento o aguardasse na superfície, como se fosse sair de um novo útero para então se esquecer de suas dúvidas e pecados. Contudo não chegou lá, havia imergido demais. Morreu afogado, com o seu ultimo desejo enchendo lhe os pulmões, ambos finalmente unidos, ambos sem vida. Eternizados no mito. 

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