quarta-feira, 7 de março de 2012

Um luar para a traição



1.

Na atmosfera noturna da cidade, enquanto os trabalhadores do dia respiram silenciosos em seus abrigos, um homem caminha relutante pelo deserto de asfalto. As luzes, como estrelas alinhadas ao caminho sem vida, iluminam uma face de desespero. O homem volta para a penumbra, prefere seguir invisível até o seu destino vergonhoso.

Atrás da porta lascada do bar, um ambiente enfumaçado recolhe meia dúzia de seres inebriados e imprestáveis. Nenhum deles repara a entrada do homem desprezível, apenas estremecem com a brisa gélida que vem da rua. O barman enche mais um copo e volta a limpar o balcão. Na mesa de bilhar, um jogador solitário se alterna entre tacadas e baforadas de charuto. É para ele que o nosso pobre homem se dirige:

- Sr. Rouge?

Enquanto solta uma volumosa nuvem de fumaça, o jogador de bilhar fita com olhos felinos o homem que o aborda.

- Sr. Rouge, sou eu Jorge Millegan. Eu lhe contatei hoje pela manhã.

O homem então apaga o charuto e caminha para fora da luz ofuscante da mesa de bilhar. Sua silhueta larga e pesada é tão intimidadora quanto a sua voz.

- Desculpe Sr. Millegan, eu esperava alguém com um perfil um pouco diferente. Você não é como a maioria dos meus clientes.

- Sinto muito não poder dizer o mesmo Sr. Rouge. O senhor realmente superou minhas expectativas.

- Me chame de Jack. Então, qual é o trabalho?

- Conversemos lá fora enquanto nos dirigimos para o carro.

- Qual é o problema Sr. Millegan? Este local não é do seu agrado? Não se preocupe nenhum desses bêbados inúteis se interessa pela sua vida medíocre. Não é mesmo? Seus idiotas!

Ninguém responde.

- Por favor, eu insisto. – Acrescenta Jorge

- Ok, ok. Esse jogo já estava um tédio mesmo.

Já na rua a caminho do carro estacionado, os dois homens voltam a conversar.

- Como os meus serviços podem lhe ser úteis Sr. Millegan? Você não aparenta ser um homem de muitos inimigos.

- Minha mulher Rose – Congelou por um instante, não conseguia pronunciar aquele nome sem que seu corpo chacoalhasse por completo.

- O que há de errado com a Sra. Millegan? Ela não lava mais as suas cuecas?

- Não é isso! – Voltou a si num acesso de raiva – Aquela vagabunda, aquela mal agradecida. – Respirou por um instante – Está dormindo com outro na nossa cama.

- Traição? Ora em todo lugar falam em adultério. Essa coisa de amor bem-sucedido é muito chata, não interessa a ninguém.

- Não posso permitir! Não quando sei que é pelo outro que ela dedica o calor intenso da sua intimidade, do que era só meu. E se ela estiver amando o outro?

- Quer dar um fim no sócio então?

- Infelizmente não sei de quem se trata. Esse maldito é como o vento, entra e sai sem deixar rastros, como um profissional do adultério, um raparigo esperto.

- Não estou entendendo Sr. Millegan. Porque diabos me requisitou para esta noite, se nem ao menos sabe onde o alvo se encontra?

- Não é ele Jack. Quem tem que morrer é ela, só assim terei certeza que não haverá outros.

- Então faça o serviço você mesmo. Comigo você só complica e encarece as coisas.

- Você não entende. Eu jamais conseguiria fazer isso, meu amor pela ordinária impede meus dedos de apertarem o gatilho.

- Um covarde digno de pena é isso o que você é. Bom, que seja então, como procedemos?

- Ela está dormindo em casa, iremos juntos, disfarçados, para que pareça um assalto. Entre.

Jorge entra no carro e liga o motor. Jack senta no banco do passageiro e acende outro charuto. A lua que brilha redonda no céu nublado, presencia com indiferença a trama mortal que se alonga na sua vizinha terra. O astro não compartilha da obscuridade humana, apenas persiste em rodar até que o seu destino como o nosso encontre a morte, a destruição. Jack fala por último:

- Muito caro, isso vai lhe custar muito caro Sr. Millegan.

2.

Na Rua David Tranaro, nos subúrbios da cidade de Los Angeles, onde muitas famílias, como a dos Millegan, vivem uma vida pacífica, um automóvel segue silencioso com os faróis apagados. O carro para rente a calçada, e dele saem dois homens mascarados, um com um porte expressivo e assustador e o outro, o motorista, mais magro e menos intimidador. Sorrateiramente ambos caminham em direção a casa número 345.

- Por favor, Sr.Rouge, peço que mantenha o máximo de silêncio. Não quero que a vizinhança participe do que está para acontecer.

- O senhor me assusta Millegan. Não sei como perante tanto pavor, um covarde consegue formular um plano tão maléfico. E eu sou um profissional Jorge, não se esqueça disso.

Entrando pela porta dos fundos, os dois homens atravessam a cozinha e a sala em total escuridão. Sobem as escadas que levam aos dormitórios e então param diante de um quarto com a porta entreaberta, de onde se ouve uma respiração serena.

- É aqui. Ficarei no carro esperando para lhe levar pra casa. Por favor, não se alongue muito, ou o pânico irá tomar conta de mim – Insiste o Sr. Millegan.

- Nada com o que se preocupar. Apenas mantenha o motor ligado.

- Leve alguma coisa da casa para que o assalto pareça mais real.

- Talvez eu devesse lhe dar um tiro também. Agora saia daqui e me deixe trabalhar.

3.

Sentado no carro, cada segundo para Jorge parecia uma verdadeira eternidade, cada suspiro uma tempestade, cada barulho um julgamento. Sentia o medo correr pelas suas veias e esmagar o seu crânio. Fazia meia hora que Sr. Rouge estava na sua casa. Talvez se livrando de provas, ou talvez fugindo do trabalho. Não, pensou Jorge, o único covarde aqui sou eu.

Eis que como vindo da fumaça do próprio charuto, Jack Rouge materializa sua imensa e assustadora massa corpórea em frente ao carro, quase causando outra fatalidade na família Millegan.

- Meu deus! Que merda é essa Jack? Quer que eu morra¿ Por que demorou tanto?

- Serviço bem feito. Me tira daqui, agora.

A caminho do centro, Jack quebra o silêncio:

- Sabe Sr. Millegan, o adultério na minha vida é algo muito comum, eu mesmo nasci de um.

- Porque isso agora Jack? - Interrompe Jorge

- Não, escute o que eu vou lhe contar. Minha mãe era uma vagabunda, talvez a mais vagabunda que já existiu, traia seu marido com tamanha intensidade e diversidade, que faria qualquer prostituta sentir se santa. Pare o carro, aqui está bom.

- Como assim? Não há nada aqui.

- Pare a porra do carro e escute!

Jorge para o carro bruscamente e Jack continua sua história.

- Meu pai não era nenhum idiota, sabia que estava sendo traído e enquanto dormia ao lado de minha mãe, planejava sua vingança. E ele, diferente de um covarde como você, executou com 37 facadas, na frente de mim e dos meu irmãos, o fim cruel para o seu casamento utópico.

- Jack, do que você esta falando? Porque eu preciso ouvir isso agora? Vamos embora!

O assassino então pega o seu revolver e aponta para o motorista.

- Cale a boca e preste atenção!

Jorge Millegan sente nas têmporas o frio do metal da Magnum. Aquela arma já matara muita gente, era como se seus gritos ecoassem na cabeça de Jorge. Ele fica imóvel.

- Sabe Sr. Millegan. O que presenciamos hoje foi um triste infortúnio. Talvez fosse melhor se os maridos nunca soubessem.

- Jack?!!

O tiro ecoou pela rua vazia, alguns pombos que dormiam no telhado de um armazém abandonado levantaram vôo. Mas não há ninguém que se preocupe para ouvir.

4.

Na casa dos Millegan. Rose dorme num sono pacato, sonhando com o seu amante, que à surpreendera pouco tempo atrás, mascarado, para uma noite de amor.

- Jack, você é mesmo incrível. Jorge nunca faria algo assim por mim.

-Jorge é bom homem Rose, ele lhe dá tudo o que precisa. Eu apenas satisfaço um de seus prazeres.

-Não diga isso Jack.

-Shhh, descanse agora Rose, eu tenho que ir. Um cliente me aguarda.

FIM

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